Em 1979, o sociólogo Roberto da Matta publicou uma obra que seria um clássico brasileiro: Carnavais, Malandros e Heróis. O objetivo do livro é analisar a cultura brasileira pelas suas experiências vivas e tradicionais, como as festividades culturais, religiosas e os conflitos cotidianos entre os brasileiros.
O título desse livro poderia facilmente ser a biografia do ano de 2022, pressentido por muitos brasileiros como um período turbulento e incerto. Esse temor tupiniquim tem motivos para existir. Enquanto o resto mundo supera aos poucos as mortes de milhares de pessoas e os prejuízos sociais avassaladores da pandemia, tentando recomeçar. O Brasil passará por um processo eleitoral em meio ao luto de mais de meio milhão de vidas perdidas. Em outras palavras, para alguns o apocalipse está acabando, para nós, ele tem data marcada para começar.
Hoje, é praticamente impossível um brasileiro comum manter-se indiferente à Política e ao Direito. As decisões do Congresso, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal afetam decisivamente nosso modo de viver. Isso desde o que vamos comer, se carne ou ovo, ou até se vamos ou não comprar aquela sonhada casa própria ou carro novo. Se poderemos ir à academia ou a igreja. Se podemos tomar aquela cervejinha com os colegas da firma ou se ainda temos que nos precaver em observância de normas sanitárias. O fato é que nossas vidas estão completamente juridicizadas, isto é, determinadas por instâncias jurídicas e políticas superiores. Isso apenas aumenta a sensação de incerteza e angústia em nós, afinal, sabemos muito bem que as instituições são dinâmicas, e por vezes, incoerentes.
Como se não bastasse, com o avanço do processo de vacinação, é bem provável que no ano de 2022 voltemos a comemorar o carnaval. O retorno da festa da carne, só desta vez, sem carne (quarenta e cinco reais o quilo de alcatra é para poucos). A festividade funciona como uma expiação dos desejos mais ferozes e humanos dos brasileiros: o desapego, a boêmia e o rompimento das correntes convencionais. É como se o carnaval fosse um período de desligamento da realidade. Ninguém tem direito de criticar essa ânsia libertadora (ou libertina), pois nossa realidade não é lá das melhores. São quatro dias para esquecer CPI, governo federal, ministros do supremo, preço da gasolina, possibilidade de apagão, bandeira vermelha duplicada na conta de energia entre outros. Sempre me pergunto se não seria o carnaval nossa terapia anti depressiva anual?
Como se não bastasse, 2022 ainda é ano de Copa do Mundo. A seleção não é motivo de grande alegria para o brasileiro contemporâneo. Mas o futebol sem dúvida é outro bode expiatório de nossas taras mais profundas, como o narcisismo e o messianismo. O futebol funciona como sustentáculo simbólico de nossas narrativas de perseverança, de talento nato, de algo diferenciado. Por meio dele, acreditamos que podemos ser bons em alguma coisa e damos orgulho ao mundo. Com a perda da referencialidade no futebol, quem poderemos chamar de heróis? É preciso procurar em outros lugares.
Pois bem, 2022 é ano de eleições. E no vai e vem de alegrias e frustações, as eleições representam o oposto do carnaval. O carnaval é liberdade lúdica das responsabilidades civis. A eleição é justamente o contrário. É a obrigação de decidir sobre seu futuro. É assumir a direção da vida política de seu país. É o momento de fazer pelo Brasil, sem a alegria de torcer por ele. Enquanto no jogo de futebol existe a esperança de que tudo pode mudar até o último minuto da partida, no jogo político, os brasileiros consideram que a partida está decidida antes mesmo de entrar em campo. É estranho pensar que no nosso imaginário, o brasileiro se considera mais telespectador nas eleições do que em uma partida de futebol.
As eleições são uma síntese entre o carnaval e o futebol: assim como no carnaval, todos são chamados a participar; no futebol, cria-se os heróis simbólicos, na política também. A crença “daquele que vai mudar o jogo” é a base do messianismo político de nosso país. Temos de aprender que quando nosso time está perdendo de sete a um, heróis não aparecem, e se surgem do nada, não fazem muita diferença. Não passam de mitos. Assim como no futebol, o jogo democrático começa no treinamento e exige observância das regras. Quem não segue as regras do jogo, deve ser expulso.
Teremos de decidir se vamos viver numa fantasia carnavalesca ou se admitiremos que perdemos todos os dias de sete a um, por uma estratégia de jogo equivocada. Se vamos entrar na festa da democracia ou participar como telespectadores. Essa é a dualidade que nos define. Embora não pareça, ainda podemos mudar a biografia de 2022, mas não será fácil.