A estética marxiana compreende a arte como um produto do trabalho[1] espiritual-material humano, determinado pela existência da realidade histórica e pela dialética dos fenômenos sociais, dos quais o homem é agente transformado e transformador. Dentro dessa concepção, a arte seria produto do pensamento e da ação, cuja intenção viria como uma resposta objetiva para os conflitos existenciais da sociedade, e não apenas como fruto da subjetividade essencial do homem.
Nesse sentido, a arte torna-se capaz de representar a universalidade de uma forma singular e de dar acesso ao mundo real, por materializar as formas ideológicas que se estabelecem no campo da superestrutura.[2] Assim, a arte situa-se entre as forças materiais e as relações sociais de produção. Na obra Contribuição à crítica da economia política, Karl Marx advoga que é através da representação estética dessa realidade objetiva que a arte ganha sua unicidade e sua originalidade.
Corroborando com o pensamento estético marxiano, o filósofo e historiador húngaro Georg Lukács, afirma em seu livro Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade, que a função social da arte seria a de representar concretamente o desenvolvimento da humanidade, descartando tudo o que se configurar como acessório e inessencial da realidade, para reter ao máximo o que há de significativo e essencial do mundo objetivo. Para ele, a unicidade e a originalidade da obra de arte não correspondem ao sentido que se dá as obras primas dos artistas consagrados pelas sociedades burguesas. Em sua visão, é original o artista que é capaz de captar o que há de substancialmente novo em sua época, e que imprime em sua obra um conteúdo que traduz a realidade tal qual se lhe apresenta.
Nessa perspectiva, a unicidade do objeto artístico relaciona-se com a ideia de conceber a arte como um produto do trabalho livre, pertencente a um contexto sociocultural, cuja existência depende de um estranhamento a partir do qual ela é elaborada. Isso torna a arte um meio de comunicação e de materialização da sociedade.
No texto Manuscritos econômico-filosóficos, Marx declara que a arte mantém uma relação de autonomia para com o trabalho alienado, o qual impede o desenvolvimento das potencialidades do homem ao oprimi-lo dentro do sistema capitalista. Dessa forma, o trabalhador não se identifica com seu trabalho e nem com o produto do mesmo, até chegar ao extremo de sua desumanização. Ou seja, quando não consegue mais identificar-se como um ser humano. Em contrapartida a esse extremo, a arte vem a ser um canal importante para a superação do trabalho alienado, por restituir ao sujeito sua condição humana.
Trabalho e arte, portanto, são duas categorias presentes nos processos materiais e imateriais de produção, e ambas podem conduzir o homem à abstração do mundo natural, possibilitando, assim, sua transformação concreta em objeto de conhecimento. Nesse sentido, o trabalho e a arte passam a ser fazeres constituídos no campo da filosofia da práxis, uma vez que são realizados a partir da apropriação de técnicas desenvolvidas pelo próprio homem para manipular ou modificar a realidade.
No pensamento estético marxiano a arte é compreendida não como obra de um Espírito absoluto – como pensava Hegel –, ou como uma mera cópia do belo natural, mas uma forma de objetivação humana dada pelo trabalho. Este último, constitui um modo essencial de o homem se relacionar com a natureza para transformá-la e por ela também ser transformado, dentro de um processo dialético de constante desenvolvimento humano.
Como observa Adolfo Sánchez Vázquez, em As ideias estéticas de Marx, ainda que a arte não se configure uma necessidade imediata do homem, por meio dela é possível se chegar à humanização e à compreensão da realidade de forma objetiva, sem desconsiderar seu caráter subjetivo. Isto se deve ao fato de a arte constituir uma dimensão essencial da própria existência humana.
Essa condição dialética na qual se insere o produto artístico o possibilita transitar entre as dimensões objetiva e subjetiva do homem sem, no entanto, distanciá-lo de sua realidade. O fato de se afirmar que a arte recebe consideráveis contribuições do caráter objetivo do homem em seu processo de produção, não quer dizer que sua subjetividade tenha maior ou menor importância dentro desse processo, pois uma categoria não exclui a outra. Pelo contrário, elas se complementam a partir do instante em que o homem histórico se percebe como tal e passa a refletir sobre si e sobre sua realidade. É justamente seu caráter subjetivo (sensitivo) que lhe dá a percepção de si e da natureza que o circunda. Dessa relação estrutural se materializa o objeto artístico genuíno como um produto do trabalho não alienado.
Vale salientar que todas as ações do homem advêm de suas necessidades, experiências e conhecimentos acumulados historicamente, e são impulsionadas por seus desejos e aspirações, quando este passa a intervir no meio concreto em que está inserido. Esta intervenção parte de dois níveis de intensões: o objetivo, do qual resulta um objeto concreto capaz de influenciar e ser influenciado pela sociedade; e o subjetivo, que parte de um conhecimento de uma situação singular para elevar-se a um conhecimento sobre da realidade em geral. Da confluência destes dois níveis a arte surge como produto de um conhecimento criativo, aplicável a diversas circunstâncias além daquela que a originou. Este mesmo conhecimento passa então a ser difundido pelo contexto sociocultural e adquire status de patrimônio da humanidade. E nesse sentido que o objeto artístico genuíno é, por excelência, produto do trabalho não alienado. O trabalho, portanto, configura-se aqui como a base material da sociedade e fundamenta toda a construção histórica do homem como um ser social.
O poeta, filósofo e jornalista Ernest Fischer, em sua obra A necessidade da arte, afirma que é da natureza humana o desejo se desenvolver e se completar para se tornar mais que um indivíduo. Para ele, o indivíduo percebe que só atinge a plenitude caso se apodere das experiências alheias que em potência poderiam ser suas, incluindo-se aí tudo o que a humanidade é capaz de produzir, pensar e vivenciar. Nesse sentido, a arte se apresenta como um meio indispensável para efetivar essa apropriação, por sua capacidade de unir o homem ao todo social. Por seu turno, o trabalho artístico configura-se um processo consciente do qual resulta a obra de arte como realidade dominada, não como um estado de inspiração embriagante.
Portanto, o artista e sua arte estão em constante diálogo com a realidade percebida e dominada. Porém, na sociedade cindida em classes a arte sofre fortes influências da ideologia hegemônica, propagando-se de forma distorcida pelos meios de comunicação de massa e pelos processos educativos, até chegar ao imaginário social destituída de seus reais sentidos e significados. É dentro desse contexto que a arte perde objetividade, deixando de cumprir sua função social, que para Fischer não é “fazer mágica e sim de esclarecer e incitar à ação”. Entretanto, o caráter mágico da arte não deve ser inteiramente eliminado, pois faz parte da natureza original de toda produção artística autêntica.
A arte, compreendida a partir dessa perspectiva, parte de uma experiência com a realidade e é construída através da percepção objetiva dos fatos. Sua função está relacionada à necessidade que o homem tem de conhecer e mudar o mundo, sem perder sua significação social e sua magia inerente.
Em consonância com o pensamento estético marxiano, Fischer alerta para que não se confunda tal magia com a mistificação da arte disseminada no imaginário social pelo discurso político-ideológico hegemônico. Esta ressalva é feita exatamente para que se preserve a compreensão da arte como produto do trabalho não alienado.
Infelizmente, a compreensão que a maioria dos indivíduos tem acerca do conceito de arte sofre distorções promovidas pelas forças hegemônicas político-ideológicas e educacionais, que disseminam ao longo da história uma visão simplista acerca da arte, com o propósito de destituí-la de sua real função social, qual seja: provocar reflexões sobre a realidade visando transformá-la.
Quanto a isso, Marx é taxativo ao afirmar que o belo não é algo externo ao homem e nem uma qualidade específica do produto artístico, uma vez que os sentidos humanos se manifestam ao mesmo tempo por uma ação objetiva, impulsionada organicamente pela percepção da realidade, e por uma intensão intelectual subjetiva, originada nas instâncias psicológicas do homem.
Sob esta perspectiva, ao associar ações objetivas a intenções subjetivas e apropriar-se do conhecimento historicamente elaborado pela humanidade, o homem passa a ser capaz de humanizar seus sentidos e, assim, qualificar estética e criticamente suas expressões na sociedade, sejam elas artísticas, culturais e/ou morais.
Referências
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
LUCÁKS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. As ideias estéticas de Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. atualizada. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
[1] Para Marx trabalho é uma “[…] atividade deliberada […] para a adaptação das substâncias naturais aos desejos humanos; é a condição geral necessária para que se efetue um intercâmbio entre o homem e a natureza; é a condição permanente imposta pela natureza à vida humana e, por conseguinte, independe das formas da vida social – ou, melhor, é comum a todas as formas sociais” (MARX apud FISCHER, 1976, p. 21).
[2] O conceito marxiano de “superestrutura” parte de outros dois conceitos correlatos: “estrutura”, estabelecida no campo da economia, da produção e distribuição, se dá na relação entre homem com o próprio homem, na qual se evidencia a diferenciação entre as classes sociais, ou seja, entre os que produzem e os que detêm os meios de produção; e “infraestrutura”, base sobre a qual as instituições se firmam, corresponde às forças produtivas e à relação entre o homem e a natureza, a partir da qual se desenvolve o trabalho pelo uso dos recursos naturais e de técnicas de produção. Por sua vez, a superestrutura diz respeito às ideologias que determinam as forças políticas, religiosas e filosóficas, o controle do conhecimento científico, os sistemas jurídicos, educativos, comunicativos e os códigos morais, éticos e estéticos. Segundo Marx, “[…] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008, p. 47).
Uma resposta
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