Qual foi a última vez que você não ouviu falar a palavra crise? Crise ambiental, crise política, crise econômica, crise financeira, crise institucional e por aí vai. Afinal, o que é a crise e por que parecemos não sair dela? Por que temos medo da crise?
Existem várias maneiras de pensar a crise, mas destacarei três:
Na primeira forma, pensamos que a crise é um desajuste, um desequilíbrio, algo impensado, inesperado que acabou nos encontrando no caminho da vida e tem por finalidade desorganizar os planos que construímos como pessoas, comunidades e nação. Nessa perspectiva a crise é um erro, um equívoco e algo a ser superado e excluído. Chamarei essa perspectiva de “ideológica negacionista”.
A segunda forma de pensar a crise é como algo intrínseco a nossa existência como pessoa e sociedade. Desse modo, sabemos que não podemos extinguir a crise da realidade e não alimentamos aversão a ela. As crises fazem parte da existência social e devem ser utilizadas como oportunidades de crescimento. A essa perspectiva denomino de “ideológica otimista”.
Embora essas duas perspectivas sejam consideravelmente opostas, elas têm por base fundamentos ideológicos, como diria Adorno: meias verdades disfarçadas de meias mentiras. A mentira eficaz é aquela que tem um pouco de verdade. O negacionismo ideológico da crise leva ao erro de pensar que os desajustes sociais vividos são anômalos, o que nem sempre (na maioria das vezes) é correto. O otimismo ideológico, por sua vez, leva o sujeito a ocultar por meio do subjetivismo e individualismo extremo a procura das causas e consequências da crise. Em síntese, as duas formas ideológicas de pensar a crise impedem de investigar suas origens, finalidades e interessados.
A terceira perspectiva, a qual discutirei um pouco mais, é a que denomino “estruturalista”. Essa concepção pensa a crise como uma forma de governabilidade pelos agentes de poder. Retiro essa perspectiva do conceito de “governamentabilidade” do filósofo francês Michel Foucault na obra “Segurança, População e Território” (1978). Esse conceito diz respeito aos meios e estratégias que o domínio político usa para moldar a subjetividade das pessoas. Em outras palavras, é a governança não apenas dos corpos físicos, mas também das ideias, das teorias, das maneiras de pensar.
A experiência da pandemia do Covid 19 é bem exemplificativa para distinguir governança dos corpos e governança das ideias. Quando um Estado ou Município proíbe aglomerações por meio de decretos e leis, governa-se sobre os corpos físicos. Isto é, por meio de normas jurídicas e pelo uso da força e coação (policiais), o Estado pode nos proibir de ir ou não a determinados lugares, sob pena de punição.
Por outro lado, quando o Estado diz que não vai aderir ao Lockdown porque isso levaria a um colapso financeiro, “quebraria o mercado”, isso é governança das ideias. Ocorre que não temos como saber se de fato quais as consequências de um fechamento integral do comércio, apenas criamos hipóteses com base em situações concretas específicas que podem ou não ser universalizadas.
No final das contas, acreditamos nesse discurso mais pelo medo da crise do que pela crise em si mesma. A crise existe, não se pode negar, mas o medo que ela provoca vai moldando nossas atitudes e pensamentos. Não quero discutir a polêmica se deve ou não haver o Lockdown, mas quero que você reflita que muitos dos pensamentos que nutrimos hoje não são nossos, são criados e alimentados por aqueles que detêm poder (econômico e político). E a melhor forma de governar, hoje, é pelo medo, ou seja, é pela crise.
Para comprovar a você, leitor, que a crise é uma forma de governança estrutural e que ela na verdade é a regra do jogo e não a exceção, irei falar das três reformas jurídicas dos últimos anos justificadas pela “estado de crise”:
A primeira é a reforma trabalhista, que, dentre as suas justificativas, dizia-se que era uma legislação ultrapassada e que dificultava a geração de empregos, desencorajava os empregadores de investir e gerar novos postos de trabalho. A flexibilização era um chamado de nosso tempo, mediante a dinamicidade da sociedade atual. Desse modo, a reforma trabalhista veio solucionar a crise do desemprego, que em 2017 atingiu o percentual de 13,7%.
Como disse no começo, toda ideologia tem meio traço de verdade. Após a reforma, o desemprego diminuiu, mas a informalidade aumentou. Temos muitos trabalhadores, poucos empregados. Várias pessoas trabalhando para aplicativos de entrega, adaptados à dimensão eletrônica hodierna, mas desamparadas de segurança jurídica e assistência social mínima. Quem ganhou e quem perdeu? Pense aí, leitor!
A segunda reforma, ainda mais emergente, era a da previdência social. Para o governo, a reforma da previdência era uma necessidade vital para a sobrevivência do Estado. Sua finalidade era evitar custos excessivos para as futuras gerações e o comprometimento do pagamento de benefícios. Crescimento da despesa previdenciária e envelhecimento da população brasileira eram argumentos centrais. Assim, a reforma da previdência deve combater a crise fiscal.
No plano da concretude, a reforma da previdência, ao estabelecer um critério de idade mínima indiscriminadamente elevado, desconsidera as diferentes expectativas de vida no país. Pessoas pobres dos Estados do Maranhão e Piauí têm expectativa de vida muito menor do que nos centros urbanos de São Paulo e Distrito Federal. A mesma reforma desconsidera, para efeitos de contribuição, as jornadas duplas e triplas de mulheres em lares brasileiros, que também são maioria em trabalhos informais (sem carteira assinada) e que terão mais dificuldade de comprovar relação de trabalho. Mas cabe lembrar do lema ideológico otimista do ex-presidente Michel Temer: “Não fale em crise. Trabalhe!”.
A terceira reforma está acontecendo agora, trata-se da reforma administrativa, instaurada por meio da PEC nº 32. As justificativas da reforma administrativa são uma mistura das proposições utilizadas pela trabalhista (flexibilização) e previdenciária (redução de custos). O argumento principal é que o serviço público é oneroso e inadequado. Argumenta-se que o tempo atual requer um público com cara e “jeito” do setor privado, caso não seja modificado, o funcionalismo público promoverá uma crise fiscal e de eficiência.
O que permanece oculto é que o sistema de saúde, que tem lutado de todas as formas contra a pandemia do coronavírus, é público, e somente por isso o atendimento universal é possível. Pouco se fala que dentro do funcionalismo público existem hierarquias e dentro desse quadro, os chamados altos cargos (juízes, promotores, membros do legislativo e executivo) não serão afetados, não sofrerão cortes ou flexibilização. Quase nada se reflete que, dentro de pequenos municípios do Brasil, a base econômica sustenta-se por via do serviço público. Mas não se criam crises sem culpados e sem quimeras, não é verdade?
Perceba, caro leitor, que os exemplos citados, todos eles vieram por meio das leis, decretos, medidas provisórias, ou seja, por meio do Direito. Isso é simbólico, mas é lógico também. Pois se a crise é a desordem, o Direito representa o retorno da ordem. Nos primeiros anos da faculdade de direito os alunos logo aprendem que existe um “ordenamento jurídico”, isto é, um conjunto de leis que “ordena”.
Todavia, e se a crise não for uma desordem? E se na verdade ela for uma estrutura pensada para governar nossos corpos, comportamentos e pensamentos? E se a crise for uma forma de controle? E se aquilo que chamamos de desordem for a ordem por outros meios e para outros fins? Então eu lhe pergunto, caro leitor: o que é o Direito ou para que serve o Direito nesse novo horizonte? Não seria ele o verdadeiro “co-ordena-dor”?
Por fim, esclareço que a perspectiva estrutural não nega que a crise exista, ela assume que a crise é real, presente e implacável. Uma crise criada não é a mesma coisa que uma crise inventada. O olhar estrutural diz que as crises precisam de intervenções humanas para aumentar ou diminuir seus efeitos e que o medo que ela provoca é uma ótima forma de conduzir as vontades dos homens, fazendo-os acreditar em mitos. A frieza da perspectiva estrutural é denunciar que a esperança também é uma estratégia do jogo. O jogo das respostas prontas, das saídas rápidas, das soluções óbvias. Ainda ouviremos muito as frases: “façamos isso, para evitar aquilo”; “façamos de tudo para impedir a crise”; “não existem outros meios”. No jogo das crises, o Direito é uma ótima forma de blefe social. Infelizmente, penso que estamos perdendo esse jogo. A pergunta que me faço é: um dia já tivemos chance de vencê-lo?
Pense comigo!