sexta-feira, 29 de março de 2024

O QUE SIGNIFICA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA? E POR QUE FALAR EM CONSCIÊNCIA NEGRA?

Publicado em 19 de novembro de 2020, às 15:56
Imagem: Geledés

Denisson Gonçalves Chaves – Professor da Universidade Federal do Maranhão, Professor da UNISULMA, Pesquisador pelo NUPEJI

“Penso, logo existo” disse o filósofo racionalista francês René Descartes em Discurso do Método. Para o filósofo, a capacidade pensante é o que nos configura como ser existente no mundo, muito mais do que uma existência no sentido biológico, como os animais, um sentido mais profundo: existir como estar presente, em outras palavras, “estar consciente de si”. Devido a seu racionalismo quase transcendental, Descartes não conseguiu ir muito além dessa consideração importante, isso porque existe uma lacuna em seu pensamento: estar presente onde? E se estamos conscientes de nós, resta saber o que nós somos?

Quero refletir com você, querido leitor, sobre a consciência, contudo não qualquer consciência, trata-se daquela que denominados de consciência histórica, e mais especificamente a consciência negra. Dia 20 de novembro comemora-se a Dia da Consciência Negra, representativo para os movimentos negros no Brasil, mas também alvo de resistência por parte de grupos contrários, de índole conservadora ou retrógrada. Quero convidá-los a pensar um pouco sobre isso, que também é um exercício autorreflexão.

Quando falamos de “consciência” remetemos ao senso comum, de considerá-la como a capacidade de refletir sobre nossos atos. Uma pessoa consciente é aquela que pensa antes de agir, como um sinônimo de “pessoa prudente”. Uma pessoa sem consciência é aquela que toma decisões baseadas em impulsos ou desejos irrefletidos ou ainda aquela que pratica seus atos sem arcar devidamente com as consequências. Em termos mais científicos, consciência é o conhecimento de si como sujeito que pensa e existe. Não agimos conforme nossos desejos fisiológicos ou instintivos como os demais animais, temos a capacidade de pensar sobre nós mesmos, é por isso que somos classificados como homo sapiens sapiens (o homem que sabe que sabe).

Ambos os conceitos são muito importantes para iniciar uma reflexão, entretanto não são suficientes. O homem não é um conceito, um termo ou uma categoria. O homem é um sujeito que vive na história. Sei que você deve ter ouvido isso repetidas vezes em vários lugares: “o ser humano é uma construção social, uma construção histórica […]”. Acontece que isso é repetido (como mantra), porém não refletido com seriedade.

O que significa “ser histórico?”. Significa que ao nascermos estamos dentro de um espaço e tempo específico que terá forças sobre nossa forma de pensar, de agir e sentir. Não somos propriamente “uma folha de papel em branco” como diria o filósofo inglês John Locke, estamos mais para um capítulo a ser escrito dentro de um romance que já está em andamento. Isso é facilmente comprovado ao olharmos para o passado e vermos como nossa forma de considerar as pessoas e as coisas se transformaram drasticamente.

Cito como exemplos dois grupos sociais: negros e mulheres. No Brasil, especificamente, as mulheres foram consideradas como propriedade moral e até física dos homens, não tendo direito ao voto até 1932. Os negros no Brasil sofreram duros processos de escravização, sendo considerados coisas e não pessoas, até meados do século XX. São fatos passados, mas que irradiam força sobre o presente, moldando nossas estruturas sociais: vejamos bem que as mulheres, mesmo que sejam o maior número de eleitoras, são menor número em representantes eleitas. Os negros são maior número em pessoas encarceradas, com postos de trabalho com salário inferior aos brancos e que mais vivem na linha da extrema pobreza.

Ter consciência histórica, assim, seria refletir sobre o poder da história sobre a vida humana, sobre como ela atua nas estruturas da sociedade e na nossa subjetividade. Chamo de estruturas sociais a economia, educação, saúde, cultura, política etc. Não significa dizer que a história é uma operação matemática e que o passado determina o futuro. Pensar assim é errado porque a história muda, e podemos muito bem verificar isso pelos exemplos citados. Antes, a consciência histórica significa trazer ao conhecimento de si e da sociedade que outras pessoas, comunidades e instituições passaram por processos que fazem parte de nós como pessoas. Consciência histórica é então um processo de autoconhecimento.

Cabe agora falar sobre: o que significa então a consciência (histórica) negra? É justamente a problematização e reflexão sobre a história do povo negro em terras brasileiras, marcada por três processos: escravidão, marginalização e extermínio. É impossível sintetizar todo esse processo histórico em um breve texto, fazê-lo chega a ser ofensivo. Portanto, apenas indico alguns textos que com certeza vão ajudar você leitor a pensar a negritude no Brasil:  O Abolicionismo e A escravidão, de Joaquim Nabuco; Manual Jurídico da Escravidão no Brasil, de André Barreto Campello; A Força da Escravidão, de Sidney Chalhoub; Racismo Estrutural, de Silvio Almeida e Racismo Recreativo, de José Adilson Moreira.

Esses textos nos ajudam a pensar o que é ser negro no Brasil. Não se trata apenas de questões meramente teóricas, de conceituar o que é negritude, escravidão etc. Isso também é importante, entretanto o conhecimento deve voltar-se para a vida concreta e real. Trata-se de entender práticas cotidianas, como: porque eu, como homem negro, tenho medo de sair do supermercado sem carregar comigo a nota fiscal das minhas compras ou porque tenho mais medo de ser parado pela polícia do que meus colegas brancos. Diz respeito a por que quando eu vou ao shopping as fotos dos outdoors são de pessoas brancas como símbolo de beleza e consumo ou ainda por que eu só tive um professor universitário negro durante os cinco anos de faculdade, enquanto no estágio criminal nas delegacias, quase todos os presos eram negros ou por que em toda minha vida eu só fui atendido apenas duas vezes por médicos negros.

Consciência negra é não naturalizar esses processos de exclusão. Naturalizar significa considerar algo como natural, como se houvesse uma ordem externa, permanente e superior aos homens, que não pudéssemos modificar. O natural está alheio a nossa vontade, ele atua independente de nossa intervenção. O racismo ainda é naturalizado, muitas pessoas se acomodam a explicações simplistas sobre a sociedade. Assim, aderem com facilidade a teses que defendem a inferioridade da pessoa negra, estereótipos como o homem negro como um sujeito perigoso, a mulher negra como sexualmente imoral ou os negros como subalternos, ainda subsistem – e com muita força – na sociedade atual.

Isso não acontece apenas de maneira explícita, quando uma pessoa diz uma fala racista publicamente. Ocorre na maioria das vezes de maneira implícita, por meio da acomodação acrítica da realidade. Quando vemos nos noticiários que as pessoas negras têm menor acesso a escolaridade, são as que têm maior índice de mortalidade infantil, são as que são mais assassinadas em confrontos policiais e compõem maior parte da população carcerária e aceitamos isso de bom grado, apenas sendo indiferentes, ajustando-nos ao pensamento “é assim mesmo, sempre foi assim!”. Estamos nos rendendo à naturalização da barbárie. É justamente contra isso que se justifica o Dia da Consciência Negra: para problematizar a realidade que exclui, estigmatiza e inferioriza.

Por fim, quero relembrar que o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra rememora o dia da morte do líder do Zumbi, do quilombo de Palmares. Esse dia foi criado para contrariar o dia 13 de maio, dia da abolição da escravatura pelo Estado brasileiro. Para parte dos movimentos negros, a abolição é um evento que mascara o real processo de marginalização do homem negro no Brasil, pois adveio por meio de forças externas e econômicas, não por um sentimento coletivo e cultural de liberdade. Por sua vez, Zumbi rememora a resistência, a luta pelo espaço e vivência negra contra as forças limitadoras da liberdade.

A semântica histórica de quilombo é valiosíssima. Quilombo representa um território não apenas geográfico, mas simbólico, onde as pessoas negras vivem sua cultura, seus valores, sua ancestralidade, sua religião, seus dialetos. Quilombo é local de compartilhamento de saberes e práticas. Todavia, quilombo também é local de conflito, de luta e de resistência. Os homens e mulheres negras, desde do tempo de Zumbi e Luiz Gama até os dias atuais, representam um perigo às forças opressoras, autoritárias e racistas que operam nas estruturas do mundo. Essas forças operam na tentativa de silenciar a consciência, de debilitar a reflexão e apagar ou deturpar a história. A consciência negra serve para abraçarmos a diversidade, contra toda adversidade (a-diversidade) que limita o pensar e agir de homens e mulheres nesse grande quilombo que é o mundo.

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